Comércio de milhas entre particulares para aquisição de bilhetes aéreos

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Comércio de milhas entre particulares para aquisição de bilhetes aéreos

Sem prejuízo dos últimos acontecimentos, há muito que se falar sobre milhas, e principalmente, sobre o “utópico” comércio de milhas entre particulares para aquisição de bilhetes aéreos.

As milhas foram criadas como um programa de fidelidade, onde as aéreas prestigiavam seus viajantes assíduos. Foram criadas como medida de unidade, ou seja, espécie de moeda virtual que fica acumulada, por determinado período de tempo, em uma carteira virtual, vinculada ao passageiro que as acumulou.

Sua forma de utilização é simples: o passageiro titular, pode, depois de determinado acúmulo, trocar quantidades pré-estabelecidas de milhas por passagens aéreas, os denominados “bilhetes prêmio”, ou por upgrades de classes, por exemplo. Por certo, por serem virtuais em um ambiente pura e simplesmente analógico, as milhas se tornaram um nicho de mercado muito específico no mundo, e, obviamente, não foram reguladas, gerando autorregulação por parte das aéreas, conforme essas desenvolviam seus programas e próprias regras.

As principais regras criadas pelas aéreas eram relacionadas à proibição de negociação de milhas com terceiros, o impedimento de emprego de fraude para acumulação e a possibilidade de suspensão da conta no programa daquele titular que infringisse regras.

Os programas de milhas se desenvolveram, passaram a ter outros parceiros, e as formas de acúmulo deixaram de ser somente por viagem. Não só os programas passaram a ter outras formas de acúmulo de milhas, como passaram a comercializar outros produtos e serviços, embora o comércio de bilhetes aéreos e produtos do turismo siga como principal mote.

O mercado de turismo foi demasiadamente atingido pelos eventos globais, e tais fatores impactaram no valor do seu tíquete médio. Assim, surgiram no mercado, de forma oculta, ditos agentes de viagem especializados na emissão de bilhetes aéreos emitidos por milhas, tentando emprestar uma sensação de previsibilidade ao mercado fluido de variação de preços.

A lógica era até bastante simples: o dito agente, intermediador, conhecia o titular de uma carteira com milhas, e conhecia uma pessoa interessada em emitir um bilhete aéreo por preços mais baixos; seu trabalho era ligar essas duas pessoas.

Como não existe mecanismo de recompra de milhas pelas aéreas, e como as milhas possuem validade, esse titular era cooptado e comercializava quantidades de milhas suficientes para emissão de um bilhete prêmio, a valores significativamente mais baixos que os necessários para emissão de um bilhete regular. Obviamente, atraía um passageiro interessado nas ditas melhores condições, o que remunerava o titular e o agente intermediador.

Tudo parece adequado, tanto que ao examinar a matéria, os tribunais, em primeiro momento, entenderam pela aplicação do princípio da legalidade, ou seja, tudo o que não é proibido pela legislação é permitido, ignorando o contrato firmado entre a companhia aérea e seu cliente.

Assim, foram surgindo, notadamente, em redes sociais, os autodenominados especialistas em milhas, todos com abordagem bem semelhante e utópica. As redes sociais foram tomadas por diversos coaches de milhas, que ensinavam, principalmente, a acumulá-las e comercializá-las.

Porquanto, sem prejuízos de uma discussão acerca da necessidade de regulação estatal das redes sociais, não se vê ilegalidade na atuação dos coaches de milhas, principalmente daqueles que ensinam, somente, a acumulá-las. Porém, em alguns contornos, alunos entenderam-se empoderados, como verdadeiros agentes de viagens.

Percebe-se facilmente a questão criada, pois, para além das grandes empresas, cujos questionamentos das suas operações se desdobram no judiciário, criou-se um exército de micro agentes de viagem, sem qualquer certificação, formação ou experiência. Com o aumento da abrangência do mercado, e atração de novos “clientes”, tivemos o escancaramento de lacunas, que precisaram, e precisarão ser supridas pelo Poder Judiciário.

O Judiciário há de intervir, e já está, porque no mercado de comercialização de milhas entre particulares, principalmente para emissão de bilhetes prêmio, não há qualquer participação, ou validação do negócio pela aérea. Diferentemente da emissão normal de um bilhete, tida dentro de um sistema internacional, chancelado e supervisionado pela aérea.

A emissão de bilhetes entre particulares é toda no escuro, o que abre espaço para fraudes e pequenos golpes. Imagine que o dito agente acessa o programa de milhas do José, para emitir bilhetes para o Felipe, e que, após o envio do bilhete emitido para o Felipe, o José retorne a sua conta e solicite o cancelamento da reserva com reembolso das milhas, ou, imagine que o José tenha conseguido acumular essas milhas em um esquema fraudulento, que vem a ser impugnado. Em ambas as situações teríamos o cancelamento do bilhete do Felipe por ausência de contraprestação, e, obviamente, não haveria como se apurar a responsabilidade da empresa aérea, que não participou do negócio.

O tema não é novo, e vem sendo enfrentado diariamente por Tribunais Brasileiros, e quando a companhia aérea é acionada por um passageiro, questionando judicialmente vícios na emissão dos ditos bilhetes prêmios e sua impossibilidade de embarque, os Tribunais têm apresentado duas conclusões possíveis.

A primeira conclusão seria pela falta de legitimidade para propositura da ação, aqui entendida em sentido amplo, falta de legitimidade ativa do passageiro, que não manteve qualquer tipo de relação com a companhia aérea, e a falta de legitimidade passiva da aérea, principalmente pela existência de negócio, não convencional, apenas entre agente de viagens e titular de programa de milhas.

A segunda conclusão vista é o apontamento de falta de diligência como causa precípua, destacando a contribuição do passageiro ao optar pela forma mais fácil e barata, fixando, assim, o entendimento que o passageiro assume um risco ao emitir bilhetes dentro desse mercado, principalmente, ao se observar que ele deixa de notar que o bilhete tem dados de emissão de um terceiro e que as milhas têm titularidade de outra pessoa que não o intermediador.

Acaso o Poder Judiciário entendesse pela responsabilização da empresa aérea, abrir-se-ia espaço jurisprudencial para questionamento judicial de qualquer tipo de fraude. Seria possível aceitar que terceiros, descredenciados, vendessem meras intenções de emissão de bilhetes aéreos, e isso teria força cogente para compelir a companhia aérea a emiti-los, sob balaio de proteção do consumidor.

A utopia não pode ser prestigiada, e não pode ser o Poder Judiciário ferramenta de enfraquecimento dos programas de milhagem no Brasil, o que poderia impactar, em muito, o já abalado mercado brasileiro de turismo.

Rafael Verdant é advogado, pós-graduado em Direito Processual Civil e Gestão Jurídica pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) e líder do contencioso estratégico do Albuquerque Melo Advogados.

Publicado por ConJur