Edifício, que é vizinho de Paraisópolis, lida com disputas internas e imóveis desvalorizados
Na entrada, o número e o letreiro estão desfalcados: “edifício”, lê-se nas plaquinhas de cobre, de onde escorrem manchas escuras sobre o muro branco. Dentro, o mato passa dos joelhos, as marcas de infiltração se espalham e alguns imóveis estão severamente depreciados.
Isso é a parte visível dos problemas do Condomínio Penthouse, no número 3891 da Avenida Giovanni Gronchi, no Morumbi, cenário de novela de sucesso da TV Globo, mas famoso também por uma foto aérea publicada em 2004 pela Folha de S.Paulo que mostrava as piscinas nas varandas separadas apenas por um muro da favela de Paraisópolis, onde moram mais de 100 000 pessoas.
A outra parte dos problemas: altas dívidas de condomínio e IPTU, uma enxurrada de ações judiciais e imóveis de 355 metros quadrados que vão a leilão por menos de 450 000 reais — e não encontram compradores.
Com somente treze apartamentos de 355 metros quadrados (um por andar, duplex na cobertura), o Penthouse agitou o mercado imobiliário paulistano quando ficou pronto, em 1984. “Era a nossa menina dos olhos. Onde, naquela época, você encontraria uma piscina na sacada? Não existia”, relembra uma corretora de imóveis que atuou por duas décadas na região.
Com fachada de traços mediterrâneos, foi vendido como a obra-prima da construtora Adolpho Lindenberg, que fez outros quatro prédios na avenida e ainda atua na cidade. Na ficção, era onde morava a “Bonitona do Morumbi”, apelido da personagem de Natália do Vale em A Próxima Vítima, de 1995.
Os tempos do glamour parecem agora um passado desbotado. Hoje, seis dos treze apartamentos devem juntos 1,5 milhão de reais em IPTU à prefeitura. A pilha de boletos de condomínio vencidos chegou a 465 000 reais em maio de 2022 — atualmente, em média quatro das treze unidades se encontram inadimplentes. O prédio soma 146 000 reais em impostos previdenciários atrasados. Na Justiça, a quantidade de ações que envolveram o condomínio chega quase a uma centena.
Para esta reportagem, Vejinha analisou mais de 1 500 páginas de processos e conversou com moradores, ex-moradores, advogados e outras pessoas envolvidas com a história do edifício. Nomes foram omitidos para preservar a privacidade de algumas delas, mas as desavenças internas serão narradas por serem importantes para se entender os problemas do prédio.
Assim como as manchas na fachada, o preço dos apartamentos é um sinal de que as coisas não vão bem. À venda via leilão judicial até 20 de fevereiro, a unidade do 2º andar foi alvo de uma briga entre irmãos que herdaram o espaço. Conta com duas suítes, dois dormitórios com sacadas privativas, dois outros de serviço, quatro banheiros e três vagas de garagem — além da varanda com piscina, que acumula água de tom esverdeado. Com partes do teto e das paredes caindo, tem lance inicial de 449 000 reais, ainda sem interessados.
No 10º andar, mais uma unidade está em leilão. Em melhor estado — exceto pela piscina quebrada —, tem lance inicial de 500 000. No 9º, o aluguel de um apê pronto para morar sai por modestos 1 200 reais — desde que se pague o condomínio de 4 800 ao mês e o IPTU de 12 000 ao ano.
“Eu tinha o sonho de morar ali”, diz um ex-proprietário, um empresário que comprou uma unidade por 500 000 reais em 2010 para revendê-la, uma década depois, após várias tentativas, pelos mesmos 500 000. No Portal do Morumbi, conjunto de prédios dos anos 1970 próximo dali, apartamentos de tamanho semelhante — e sem piscina privativa — são anunciados por 1,5 milhão. “Mas o condomínio do Penthouse é caro e o prédio não oferece nada. Antigamente, tinha academia e cozinha no térreo, mas foi tudo degradando”, ele diz. “Além disso, o prédio perdeu valor após o crescimento de Paraisópolis”, afirma.
Quando o edifício foi inaugurado, em 1984, Paraisópolis era um conjunto de moradias distante ao horizonte. A partir de 1990, a ocupação da área ganhou força, com a chegada de moradores de outras comunidades que foram desapropriadas na cidade. No começo dos anos 2000, Penthouse e Paraisópolis já eram vizinhos. O convívio entre duas realidades tão distantes (se não no mapa, na situação socioeconômica) nunca foi tranquilo.
“Morar ao lado de uma favela não é algo desejado pela elite paulistana. Aquele contraste não é típico de São Paulo. A segregação, na cidade, não se dá por um muro entre ricos e pobres: temos grandes regiões de alta renda e uma periferia distante”, diz o professor e pesquisador Renato Cymbalista, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Além de ser uma área com altos índices de ocorrências policiais, os ex-moradores são unânimes em se queixar do som alto nas noites de baile na comunidade. “Ficou insustentável, era quase toda semana. Os carros ligavam o som no último volume”, diz um ex-proprietário que morou ali até 2020. “A música ia até altas horas”, afirma uma ex-moradora que viveu mais de dez anos ali.
“As pessoas querem colocar a decadência do Morumbi na conta de Paraisópolis”, afirma Gilson Rodrigues, liderança local e presidente do G10 Favelas. “O Morumbi foi feito com uma proposta de ser um bairro afastado, mas com o tempo os ricos foram para outras regiões, como Moema”, ele explica. “O baile (funk) da DZ7 acontece em uma área distante do prédio, no meio de Paraisópolis, nem chega perto dali”, diz.
Enquanto Paraisópolis crescia, dentro dos muros uma série de desentendimentos abalava o Penthouse. No final dos anos 1990, começaram a surgir moradores que deixavam de pagar a taxa condominial. A partir de 1996, o prédio passou a lidar com um alto número de ações na Justiça, boa parte motivada pelos calotes.
Um exemplo é a batalha entre o prédio e um dos seus moradores mais antigos, um ex-sócio de uma firma de publicidade e de uma locadora de vídeos, proprietário da unidade do 1º andar desde 1987. Entre 2004 e 2023, pelo menos 53 processos envolveram o empresário e o Penthouse. O apartamento foi a leilão mais de uma vez para a quitação das dívidas, que no ano passado chegaram a 400 000 reais. Nunca foi arrematado. Da parte do morador, ele moveu ações ligadas a problemas como uma infiltração no apartamento. O proprietário e seu advogado não quiseram comentar as disputas.Continua após a publicidade
Além das parcelas condominiais, o tal morador soma 204 000 reais em IPTUs vencidos, mas não é o maior devedor do imposto no endereço. Em primeiro lugar aparece uma senhora do 11º andar, com 639 000 reais — ela chegou a ser investigada em uma etapa da Operação Lava-Jato, em 2016. À época, trabalhava em um banco panamenho acusado de servir de intermediário para propinas. Questionado sobre as dívidas, o advogado e filho da proprietária afirma que “não existe nenhuma ação penal” contra ela e que os valores de IPTU “estão errados e medidas contrárias a essas cobranças estão sendo tomadas”.
“Houve épocas em que o condomínio tinha quase vinte processos ativos. Isso trazia grandes encargos para a administração”, afirma um advogado que atuou nos processos do Penthouse. Na tentativa de contornar o buraco financeiro, outros moradores começaram a divergir e a brigar entre si. “Houve um racha comunitário. Alguns se mudaram e deixaram o apartamento. Para eles, também deixou de ser prioridade pagar o condomínio”, diz outro advogado.
No início dos anos 2010, uma nova alta na inadimplência agravou a situação. “A estrutura física do prédio passou a se degradar. As coisas ficaram bem ruins a partir de 2015”, lembra um ex-morador, empresário do mercado imobiliário. A taxa de condomínio tinha de subir mais e mais, para conter as dívidas. “Nesses casos, o rateio precisa ser feito levando em conta só as unidades pagantes, porque os custos continuam”, explica o advogado Rafael Verdant, do escritório Albuquerque Melo.
Outros dois apartamentos, no 9º e no 7º andar, somam 550 000 reais em dívidas de IPTU. O Penthouse também cobra cerca de 92 000 reais referentes a taxas de condomínio atrasadas dessas unidades. O prédio ajuizou as dívidas contra um advogado, a quem atribui a propriedade dos imóveis. No site da prefeitura, porém, os IPTUs não pagos são atribuídos a uma empresa de consultoria e a uma pessoa falecida. O advogado que cuida dos casos do suposto devedor afirma que o cliente “não é proprietário de qualquer unidade no referido condomínio”. A síndica, por sinal, também deve 81 000 reais de IPTU.
A cobertura duplex é outro atestado de que o edifício não envelheceu bem. O primeiro proprietário foi um empresário, dono de lojas de carros de luxo na Avenida dos Bandeirantes. No final dos anos 1990, uma modelo, então casada com ele, viveu no imóvel. Depois o apartamento ficou vazio e ele convidou uma secretária para ocupá-lo. “Ele pagava o IPTU e ela tinha de arcar com o condomínio”, diz uma pessoa que era próxima da família. Foram mais de dez anos nesse arranjo, até que a funcionária comprou um apartamento próprio em outro condomínio e se mudou.
O empresário, então, reformou a cobertura para tentar vendê-la. Com cerca de 1 000 metros quadrados, foi comprada por um casal por 1,6 milhão de reais em 2017 — 2,2 milhões em valores atualizados pela inflação. Hoje, está no mercado novamente por 2 milhões.
A reportagem procurou o condomínio por meio da advogada Priscila Cortez de Carvalho, que atende o Penthouse, e solicitou entrevistas com a síndica, que não se pronunciou sobre os problemas apontados.
No passado, o diminuto grupo de moradores do Penthouse chegou a compor um quadro vibrante e diversificado: donos de galerias de arte, empresários do ramo de colchões, proprietários de escolas, executivos de grandes redes varejistas ou da área de minério de ferro, a ex-modelo…
“Vivi anos felizes naquele endereço”, conta um ex-morador que viveu ali até o fim da década passada e sente saudade das festas que promovia no apartamento. “Os cômodos eram ótimos e vi minha família crescer ali”, relembra outra ex-moradora.
Hoje, as piscinas vazias nas varandas formam uma foto bem diferente daquela que tornou o prédio famoso. “Em 2004, já dava para perceber que algo não ia tão bem no condomínio”, relembra o fotógrafo Tuca Vieira, 49, autor da icônica imagem aérea, levada à Bienal de Veneza em 2007. Na época, Vieira trabalhava em uma série de reportagens sobre os 450 anos da capital paulista, e outra fotógrafa do jornal, Marlene Bergamo, deu a dica para que o edifício entrasse na pauta. “A foto saiu na capa do jornal”, ele conta. “Fico contente por ter feito um trabalho que incomodou. É uma foto com importância social”, conclui.