O sistema de responsabilidade no transporte aéreo internacional

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O sistema de responsabilidade no transporte aéreo internacional

Razões de aplicação dos limites impostos pela Convenção de Montreal em detrimento do CDC

Desde que a Convenção de Montreal foi internalizada e entrou em vigor, há quase 15 anos, deu-se início a uma longa discussão e a ciclos de decisões divergentes em todos os tribunais do Brasil, acerca da prevalência de suas disposições em relação aos demais diplomas legais pré-existentes, principalmente o Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Em que pese se tratar de norma específica, posterior, que regulamenta o transporte aéreo internacional, e de igual hierarquia ao CDC (já que os tratados internacionais são internalizados com status de lei ordinária), ainda há muitas controvérsias acerca da sua prevalência.

Para dar um fim às decisões contraditórias e uniformizar o entendimento nos tribunais, trazendo a tão almejada segurança jurídica à questão e ao setor aéreo, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou o tema no julgamento do RE n° 636331, no qual se firmou o entendimento de que as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas internacionais têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

Dando interpretação mais ampla ao artigo 178 da Constituição Federal e assentando que este determina a observância dos tratados internacionais na ordenação do transporte aéreo internacional, o Supremo firmou o Tema 210, reconhecendo que a proteção ao consumidor não é a única diretriz a orientar a ordem econômica.

Não obstante, mesmo diante desta decisão, que teve repercussão geral reconhecida, ainda nos deparamos com decisões judiciais conflitantes, principalmente no que se refere aos danos morais. Muitos juízes, desembargadores e até ministros mantém o entendimento de que dano moral à passageiro não estaria submetido as regras previstas pela Convenção de Montreal, já que além da decisão do STF discutida no Tema 210 ter se restringido aos danos materiais, a norma internacional também seria omissa quanto ao cabimento ou não de indenização de cunho extrapatrimonial em casos envolvendo transporte aéreo internacional, de modo que se aplicaria, então, nesta hipótese, o Código de Defesa do Consumidor.

Independente desta discussão quanto ao alcance da aplicação de normas internacionais no transporte aéreo, que também é de extrema relevância, já que a Constituição Federal prevê, de forma expressa, em seu artigo 178, que deverá se observar os acordos firmados pela União, aqui vamos propor a reflexão sob ótica diversa, sem que façamos distinção para fins de alcance da norma em relação à natureza do dano, até porque, como discorreremos a seguir, a Convenção também não o faz.

O primeiro ponto a ser destacado é em relação ao que prevê o artigo 29 do referido diploma internacional. Isso porque, de acordo com este dispositivo, é vedado, de forma expressa, no transporte de passageiros, bagagem e carga, qualquer indenização punitiva, exemplar ou de qualquer natureza que não seja compensatória.

Ora, em que pese parte da doutrina entender que a natureza jurídica dos danos morais tem função também satisfatória, ela não se esgota nesta vertente, já que seu principal caráter, inclusive, é sócio punitivo e, portanto, sendo a Convenção de Montreal a legislação aplicável a casos envolvendo transporte aéreo internacional, e nela estando previsto que qualquer indenização deverá ter caráter meramente compensatório – vedando expressamente as indenizações de caráter punitivo e exemplar – temos que não seria razoável fazer distinção quanto à natureza do dano para fins de aplicação das regras previstas na Convenção de Montreal, principalmente a que hoje ainda induzem os Tribunais a proferirem decisões divergentes.

Não haver dispositivo na Convenção que de forma expressa preveja indenização de cunho extrapatrimonial, não significa dizer que a legislação é omissa a justificar a aplicação de outra norma, pelo contrário. Nos casos envolvendo transporte aéreo internacional, ao se entender pela existência de qualquer dano a justificar uma indenização, este só poderá ter caráter compensatório (já que se proíbe de forma expressa indenizações de caráter punitivo ou exemplar) e, portanto, estar sujeito, independentemente da sua natureza, as regras da norma prevalecente, ou seja, a internacional, como já sacramentado, mesmo que parcialmente, pela nossa Corte em casos envolvendo transporte aéreo internacional de passageiros.

Conclusão similar foi adotada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, após minuciosa análise do texto da Convenção quanto a possibilidade de condenação em danos morais mediante a sua aplicação: “o conceito de dano, subentendido no artigo 22., n° 2, da Convenção de Montreal, que fixa o limite da responsabilidade da transportadora aérea pelo prejuízo resultante, designadamente, da perda de bagagens, deve ser interpretado no sentido de que abrange tanto o dano material como o dano moral” ( TJUE, Processo C-63/09 [2010/C 179/15]).

Neste sentido, temos que as normas previstas pela Convenção de Montreal, deverão se estender e serem aplicadas a todo e qualquer tipo de dano, de modo que não há que se falar em aplicação das normas quando há indenização apenas de cunho patrimonial, já que a natureza do dano não deverá ser o critério a ser invocado para definição da prevalência desta ou daquela legislação.

Como mencionamos anteriormente, a Constituição Federal é clara ao determinar que deverão ser observados, no transporte aéreo internacional, os acordos internacionais firmados pela União. Da mesma forma, prevê o nosso Código Civil, quando no seu artigo 732, determina que nos contratos de transporte em geral, deverão ser aplicados os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções Internacionais.

Infelizmente, o Poder Judiciário do Brasil, na contramão da jurisprudência internacional, ainda resiste bastante à aplicação dos Tratados Internacionais nos quais o país é signatário. Nem é preciso dizer que, além de ser um potencial risco diplomático, esse caminho traz insegurança jurídica para as partes envolvidas e coloca o Brasil atrás de países vizinhos na lista de escolha para sede dos novos players da aviação, o que por si só provoca perdas incalculáveis para economia nacional e impactos diretos aos consumidores.

Um dos principais propósitos da Convenção de Montreal é justamente o alcance de uniformidade no direito relativo ao transporte aéreo internacional. Ao negar a plena aplicação da Convenção nos casos de transporte aéreo internacional, o Poder Judiciário está descumprindo uma obrigação internacional consuetudinária, indo contra imperativo do pacta sunt servanda e da boa-fé do Estado Brasileiro perante a ordem internacional, o que atrai risco e responsabilidade, inclusive com a possibilidade de que outro Estado signatário proponha ação contra o Estado Brasileiro junto à Corte Internacional de Justiça.

É necessário se discutir, ao nosso sentir, que a Convenção de Montreal não mitiga ou afasta direitos do consumidor, mas serve de régua às especificidades do transporte aéreo internacional, que exige regras universais e uniformes frente a abrangente atuação geográfica das companhias aéreas.

Para além da diretriz de proteção aos direitos do consumidor é preciso que o Poder Judiciário faça uma análise profunda e que se coadune com as normas e princípios internacionais para compreender que a ordem jurídica também deve atender o acesso aos meios de transportes e à unificação das regras de transporte aéreo internacional, conforme interpretação extensiva do artigo 178 da CF, já referendada pelo Supremo Tribunal Federal.

O momento é ideal para se reacender a discussão. O Supremo Tribunal Federal tem em suas mãos uma nova oportunidade de esclarecer e resolver o impasse que persiste sobre a aplicação da Convenção de Montreal em detrimento do Código de Defesa do Consumidor, no que diz respeito às demandas que tratam de pedidos decorrentes de dano moral gerado aos passageiros em voos internacionais.

Isto porque, está em pauta de julgamento no STF o Recurso Extraordinário no 1.306.367, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que a empresa aérea Air France questiona decisão do TJ/SP que a condenou a pagar indenização por danos morais em razão do cancelamento de um voo. Segundo a Companhia aérea, o Tribunal de origem não teria reconhecido o prazo prescricional de dois anos para o passageiro reclamar pela indenização, conforme previsto pela Convenção, pois entendeu a Corte que, por se tratar de danos morais, estes não estariam sujeitos às regras do diploma internacional, pelo que foi considerado então o prazo de 5 anos previsto pelo CDC

O julgamento está suspenso em razão do pedido de vista feito pelo Ministro Luis Roberto Barroso, que já se manifestou em outras oportunidades pela abrangência da Convenção aos danos morais, de modo que aguardamos que o STF, em que pese os dois votos já desfavoráveis ao setor, aproveite a oportunidade, para promover um debate coeso e atento aos desdobramentos jurídicos e econômicos das suas decisões tanto no plano nacional quanto no internacional.

Todos perdem na resistência de aplicação dos acordos internacionais, a democracia brasileira, os consumidores, o sistema aeronáutico nacional, o próprio Poder Judiciário e, principalmente, o setor aéreo internacional, que hoje atravessa uma enorme crise mundial decorrente dos efeitos diretos e negativos advindos com a pandemia da Covid 19, e por isso precisam, mais do que nunca, dos holofotes virados para sua direção, para que volte ser um setor economicamente viável e saudável, condição de interesse social-econômico universal.

O que se espera, por fim, é que não seja o Poder Judiciário o fomentador e avalista de conflitos judiciais que tragam ainda mais custos e prejuízos para um setor mundialmente essencial e que vive o auge histórico dos prejuízos operacionais. Afinal, as normas da Convenção de Montreal também se justificam por desestimular o comportamento litigante e unificar direitos e entendimentos sobre valores pagos pelos danos ocasionados.

JULIA VIEIRA DE CASTRO LINS – Sócia do Albuquerque Melo Advogados, CLO do contencioso cível internacional, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
DANIELLE BRAGA MONTEIRO – Sócia do Albuquerque Melo Advogados, CLO do contencioso cível de escala e estratégico, graduada pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND-UFRJ). Reconhecida como uma das advogadas mais admiradas do Brasil no setor aeronáutico pelo ranking “Advogadas Mais Admiradas do Brasil”, lançado em 2021, além de ter sido reconhecida pelos seus trabalhos com Direito do Consumidor

 

Publicado por JOTA