Litigância predatória e o custo da judicialização no setor aéreo brasileiro

Litigância predatória e o custo da judicialização no setor aéreo brasileiro

Brasil precisa urgentemente de um debate sério e estruturado sobre esse fenômeno

O Brasil, um dos maiores mercados de aviação civil do mundo, enfrenta uma realidade paradoxal: enquanto somos a sétima maior potência no setor, o número de ações judiciais movidas contra companhias aéreas atinge níveis alarmantes.

De acordo com a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), o Brasil registra 5.000 vezes mais processos judiciais que os Estados Unidos. A proporção é de 1 ação para cada 227 passageiros no Brasil, enquanto nos EUA esse número é de 1 para cada 1,2 milhão.

Vejam que, em que pese sermos uma referência mundial no setor, com uma frota moderna, aeroportos pontuais e baixos índices de cancelamentos e atrasos de voos, nosso índice de judicialização é altíssimo, e cresce exponencialmente, causando imensos custos e prejuízos para as companhias aéreas e prejudicando o desenvolvimento da aviação.

Que a judicialização excessiva é um problema no Brasil não é novidade, tampouco o debate em torno deste problema e dos impactos que isso representa na nossa economia. No setor aéreo, portanto, não seria diferente.

Contudo, o que vem chamando a atenção das empresas é a forma exponencial como esses números vêm crescendo, em que pese todas as medidas que vêm sendo adotadas no sentido de se combater e desestimular essa procura desenfreada pelo Judiciário em busca de indenizações.

O mais alarmante é que, conforme dados trazidos pela Abear, “cerca de 10% dos aproximadamente 400 mil processos movidos no país foram ajuizados por apenas 20 advogados ou escritórios advocatícios”.

Ou seja, o que já era algo que vinha sendo discutido e mapeado pelas companhias aéreas se concretizou. Há uma articulação clara de litigância predatória, praticada por meio do que se tem chamado de aplicativos abutres, que identificam “problemas” em voos, e estimulam os passageiros a ingressarem, de forma rápida, fácil e sem custos, com um processo judicial, na promessa de ganharem indenizações vultuosas.

Tudo isso ainda ocorre muito por conta do uso indiscriminado do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em casos que envolvem companhias aéreas, ignorando muitas vezes as normas que regulamentam o setor, além das convenções internacionais da qual o Brasil inclusive é signatário.

O CDC, com suas regras amplas e muitas vezes interpretadas de maneira flexível, oferece uma base para ações judiciais que em outros países sequer seriam cogitadas. Nos EUA, por exemplo, legislações claras, objetivas e específicas para o setor aéreo são aplicadas, evitando que pequenos transtornos, como atrasos e cancelamentos, resultem automaticamente em ações por danos morais.

No Brasil, a prática da “indenização por dano moral presumido” tem incentivado o ajuizamento de ações por meio dessas plataformas digitais, sem haver a devida comprovação de prejuízos reais, o que agrava ainda mais o problema.

Hoje, ainda segundo a Abear, 98,5% das ações judiciais globais movidas em face das companhias aéreas estão concentradas no Brasil, ainda que sejamos referência na operação do setor aéreo mundial. É preocupante analisar esse número quando se sabe que mais de 90% dos voos pousam e decolam sem nenhuma intercorrência. Como podem esses dados conversarem?

O Brasil precisa urgentemente de um debate sério e estruturado sobre a judicialização no setor aéreo. Não se trata de criminalizar a busca por direitos, mas de entender as causas e os efeitos desse fenômeno. Ações de litigância predatória, incentivadas por plataformas de tecnologia e influenciadores digitais, estão se tornando um problema sistêmico, prejudicando não apenas as companhias, mas todos os consumidores que, no final, arcam com os altos custos das operações.

A solução passa, necessariamente, por uma maior articulação entre o Judiciário, o Legislativo e as companhias aéreas. O Brasil precisa adotar medidas mais rigorosas para evitar o abuso do sistema judicial, ao mesmo tempo em que deve garantir que os direitos dos consumidores sejam respeitados de forma justa e proporcional. Além disso, é fundamental que o sistema de compensação de danos morais seja reformulado, adequando-se às melhores práticas internacionais e garantindo que apenas aqueles que realmente sofreram prejuízos possam ser compensados.

Às companhias aéreas sobra, por enquanto, continuar investindo na prevenção do litígio, por meio de bancas de advogados especializados que atuam no pré-litígio, respondendo as reclamações direcionadas ao Procon ou consumidor.gov, bem como em tecnologias que rastreiem as fraudes do setor.

Em resumo, a judicialização excessiva no setor aéreo é um problema que afeta a todos: companhias, consumidores e o próprio sistema de Justiça. O Brasil tem, diante de si, uma oportunidade de liderar uma mudança significativa nesse cenário, adotando uma abordagem integrada e balanceada que reduza os litígios desnecessários, preserve os direitos dos consumidores e, acima de tudo, torne o setor aéreo mais acessível e eficiente para todos.

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Julia Vieira de Castro Lins

Sócia do Albuquerque Melo Advogados, CLO do contencioso cível internacional, graduada pela PUC-Rio e pós-graduada em Direito Empresarial pela FGV

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Renata Martins Belmonte

Gerencia a equipe do Albuquerque Melo Advogados em Prevenção de Litígios e Recuperação de Créditos, pós-graduada em Processo Civil pela Escola Paulista de Direito e especializada em Direito Comparado pela Universidade de Coimbra.

Publicado por Jota