Lei do Superendividamento: Lacunas e novos desafios na concessão de crédito

Lei do Superendividamento: Lacunas e novos desafios na concessão de crédito

*Por Julia Vieira de Castro Lins e **Renata Belmonte

Na última semana foi publicada a Lei 14.181/21, que altera dispositivos importantes do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto do Idoso, com vistas a prevenir e dar tratamento ao superendividamento, complementando o que já regulamentavam as legislações em vigor em relação à disciplina do crédito.

As novidades trazidas pela Lei, principalmente em relação à transparência das informações prestadas aos consumidores, merecem especial atenção das empresas, a fim de que adequem suas práticas comerciais para oferecimento e concessão de crédito, evitando, assim, que eventuais desconformidades acabem numa disputa judicial com consequente impactos negativos para seus negócios.

Apesar de trazer relevantes alterações, e ter como objetivo principal evitar o superendividamento do consumidor, as novas regras ainda precisam de regulamentações específicas, o que por outro lado acabou por acarretar o aumento da insegurança jurídica às financeiras e bancos, que passaram a ser protagonistas e responsáveis pelo que se passou a chamar de “crédito responsável”. Isso porque, a nova lei transferiu para o fornecedor a responsabilidade pela educação financeira do consumidor, ao dispor, expressamente, que caberá à ele fomentar a educação financeira do consumidor, bem como garantir práticas de prevenção ao superendividamento.

Veja que diversas regras foram impostas às empresas, visando evitar práticas que prejudiquem que o consumidor tenha clareza sobre os termos do empréstimo/financiamento almejado. Está proibido, por exemplo, conceder créditos na modalidade “sem consulta ao SPC/SERASA”, obrigando as financeiras a “avaliar de forma responsável as condições de crédito do consumidor”, assim como o prazo da oferta do crédito deve ser de, no mínimo, dois dias. Ainda, o fornecedor deverá informar claramente sobre o custo efetivo das operações de crédito, bem como taxa de juros, juros total e total de encargos.

Ou seja, o advento desta Lei trouxe um dever jurídico consolidado do credor de não fornecer créditos sem que haja antes uma análise do caso concreto, para que não seja oferecida uma obrigação pecuniária que coloque o devedor em situação de superendividamento, ou seja, que o consumidor comprometa o mínimo necessário à sua subsistência.

As sanções ao descumprimento das obrigações pela nova Lei estão previstas no artigo 54-D, que prevê que “poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.” Veja que a lei não estabelece critérios específicos para revisão do contrato, o que provavelmente dará margem a inúmeras discussões.

Vale lembrar que os devedores de má fé, considerados aqueles que agiram de forma dolosa, não estão amparados por estas regras, conforme expressamente disposto na lei.

Até agora comentamos apenas sobre o caráter preventivo trazido pela Lei, com a imposição de deveres informacionais e a implementação de novas práticas. No entanto, há também dispositivos que regulamentam o tratamento do superendividamento, que da mesma forma merecem comentários.

Parafraseando o procedimento de recuperação judicial de empresas e com objetivo de se prestigiar a possibilidade de o consumidor renegociar suas dívidas, a lei trouxe a possibilidade dele requerer em juízo o processo de repactuação das dívidas, no qual se apresentará em audiência conciliatória, na presença de todos os credores, um plano de pagamento, com redução de juros e prazo máximo de 5 anos. O consumidor beneficiado com o plano de repactuação, só poderá requerer novamente o benefício após dois anos da quitação total das dívidas do plano anterior.

O credor que não comparecer na solenidade conciliatória terá a exigibilidade de seu crédito suspensa e a interrupção dos encargos de mora, sem prejuízo de ter sua participação compulsória ao plano apresentado pelo consumidor endividado. Não suficiente, o pagamento do credor ausente ocorrerá, tão somente, após o pagamento do crédito de quem esteve presente à audiência.

Um dos fatores de maior atenção, todavia, é o fato da Lei prever a possibilidade de revisão dos contratos caso a negociação fracasse. Ao credor que se opor ao plano, a pedido do consumidor, o juiz instaurará processo por superendividamento para revisão e repactuação da dívida remanescente, mediante plano judicial compulsório.

Por fim, outro ponto de atenção é em relação aos contratos conexos, uma vez que a lei dispõe que, se o consumidor exercer seu direito de arrependimento, os contratos conexos se resolvem de pleno direito. Todavia, a Lei trouxe, expressamente, que os contratos de fornecimento de crédito serão conexos ao contrato do fornecimento principal do produto e serviço, quando a concessão do crédito for feita no local do fornecimento do produto/serviço, ou então quando o fornecedor de crédito recorrer ao fornecedor de produto/serviço para a preparação ou conclusão do contrato de crédito. Isso significa dizer que, agora, se um banco financiar a compra de maquinário, por exemplo, e o consumidor se arrepender da compra, o contrato de financiamento também se resolverá.

Veja que, conforme mencionamos, a Lei visa a proteção dos superendividados na busca pela manutenção do mínimo existencial ao devedor, sem dizer, todavia, quais critérios deverão ser utilizados como parâmetro para classificação deste perfil de consumidor. Assim, enquanto não se definir o que se entende por mínimo existencial, provavelmente a concessão de créditos será mais rigorosa, uma vez que não se sabe, até então, qual percentual dos rendimentos da pessoa poderá ser comprometido e, portanto, qual perfil de devedor se pretende proteger.

De maneira geral, o que podemos concluir é que a nova Lei consolida a cláusula geral de boa-fé, especialmente nos pilares da lealdade e do dever de informação, contudo, ela deixa os fornecedores de créditos expostos, na medida em que lhes transfere a responsabilidade pela educação financeira dos consumidores e a obrigação pela implementação de práticas de prevenção ao superendividamento, o que certamente trará uma resposta do mercado no preço de seus produtos e na redução dos juros nos financiamentos, o que pode afetar exatamente quem se pretendia proteger, o consumidor de baixa renda.

*Julia Vieira de Castro Lins Botelho é advogada, pós-graduanda em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela Universidade Candido Mendes e sócia do escritório Albuquerque Melo Advogados.
**Renata Belmonte é líder de equipe da área de recuperação de créditos do escritório Albuquerque Melo Advogados.

Publicado por Política em Gotas