As novas configurações familiares têm desafiado o Direito a acompanhar as mudanças da sociedade. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que mais de um terço das famílias no Brasil são formadas por arranjos não tradicionais, o que levanta questionamentos sobre responsabilidades parentais para além dos laços biológicos. Nesse cenário, a pensão socioafetiva tem sido reconhecida cada vez mais nos tribunais, trazendo à tona a discussão sobre o papel do afeto na criação de vínculos jurídicos e obrigações financeiras.
Embora o Código Civil não faça menção específica à pensão socioafetiva, os tribunais têm utilizado os artigos 1.694 a 1.710, que tratam da obrigação alimentar, como base para a análise de casos. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reforça o princípio do melhor interesse da criança, justificando a responsabilidade alimentar mesmo sem um vínculo biológico, desde que fique comprovada a dependência econômica e a convivência estável entre as partes.
Para a advogada Tatiana Naumann, especialista em Direito de Família e Sucessões, o reconhecimento da pensão socioafetiva reflete a evolução das relações familiares e a necessidade de garantir segurança para crianças e adolescentes que cresceram sob a proteção e sustento de padrastos, madrastas ou outros responsáveis afetivos. “O alimentante, quando convivia com o alimentando, era responsável pelas necessidades dessa criança. Quando a relação termina, o filho socioafetivo não pode ficar desamparado”, explica.
A especialista destaca que, para que esse tipo de relação seja reconhecido judicialmente, é necessário comprovar três elementos essenciais: a dependência econômica do alimentando, a assunção pública do papel de pai ou mãe pelo alimentante e uma convivência prolongada entre as partes.
“Não é qualquer relação que vai gerar essa obrigação. Tem que haver um reconhecimento público, como padrasto ou madrasta que participa ativamente da vida da criança, indo a reuniões escolares, provendo sustento e assumindo essa função diante da sociedade”, esclarece Tatiana.
A advogada também alerta para um dos maiores desafios na comprovação desse vínculo: a documentação da dependência econômica. “Se a relação é fácil de comprovar, a dependência é mais difícil. O Judiciário exige provas de que aquela criança tinha no padrasto ou madrasta sua principal fonte de sustento, o que pode ser feito por meio de recibos, extratos bancários, depoimentos e outros documentos que atestem essa realidade”, detalha.
Outra questão relevante é a duração da convivência. Embora não haja um prazo fixo estabelecido na legislação, o entendimento dos tribunais é de que deve haver uma convivência prolongada, o que exclui relações efêmeras ou de curta duração. “Não é porque alguém namorou por alguns meses uma pessoa com filhos que será obrigado a pagar pensão. A jurisprudência é criteriosa para evitar pedidos indevidos e garantir que apenas relações de fato consolidadas gerem essa obrigação”, pontua a especialista.
No entanto, apesar da crescente aceitação da pensão socioafetiva no Judiciário, Tatiana Naumann observa que ainda há desafios na disseminação correta desse conceito. “Muitas pessoas confundem a ideia de que qualquer padrasto ou madrasta deve pagar pensão, o que não é verdade. É o conjunto da obra que define a obrigação. A jurisprudência estabeleceu filtros para evitar abusos e garantir segurança jurídica”, diz.
Para a advogada, a previsão desse tipo de pensão é essencial para proteger os interesses de crianças e adolescentes, principalmente em situações em que os pais biológicos são ausentes. “O vínculo biológico, por si só, não define a relação de cuidado e sustento. Muitas vezes, quem exerce esse papel é um padrasto ou madrasta, e a justiça precisa reconhecer essa realidade para não deixar essas crianças desamparadas”, conclui.
Fonte: Jornal do Comércio