Dever de reparação por danos da Lava Jato: benefício Erga Omnes

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Dever de reparação por danos da Lava Jato: benefício Erga Omnes

Especialistas têm descrito desproporcionalidade e irrazoabilidade nas punições às pessoas jurídicas durante a Lava Jato.

Historicamente, o Estado brasileiro adota postura da irresponsabilidade jurídica diante de danos causados a particulares, baseando-se em princípios datados do absolutismo1, em oposição aos cânones que nortearam formação do Estado de Direito2. A Constituição Imperial de 1824 a definia restrita a atos lesivos de servidores públicos, portanto, subjetiva. Somente em 1946 introduz-se a noção de responsabilidade objetiva do Estado. Solidificada na Constituição de 1988 (Art. 37, §6º CF/88), marcando lento processo rumo à construção de um regime de responsabilidade do Estado.

Quanto à responsabilização por atos jurisdicionais, o seu desenvolver é mais insípido. Do período colonial até o imperial, o princípio de irresponsabilidade pessoal do juiz permanece ileso3. Com edição do Código Civil de 1916, positivou-se sem maior alteração, expressão da soberania exercida por autoridade política judiciária e sua independência. Não se cogitava responsabilização do Estado por atos do juiz no exercício de função jurisdicional contra direitos de terceiros. Após promulgação da Constituição de 1988, o Estado é então obrigado a indenizar, na fattispecie de “condenação de pessoa física por erro judiciário e prisão além do tempo fixado na sentença” (Art. 5º, LXXV, CF/88). Reafirmando tacanheza no caminho de um processo civilizatório e um regime de responsabilidade estatal compatível com o Estado democrático de Direito4.

Para Hans Kelsen, não há que se falar em um direito, sem que deste advenha responsabilidade – e, portanto, sanção – por seu descumprimento5. Neste sentido, a responsabilidade é garantia da existência de deveres jurídicos. Incluindo de direitos de propriedade, vistos pelo jurista austríaco como esfera de autonomia de determinado sujeito sobre coisa em relação aos demais6. O Estado, segundo as lições do sociólogo alemão Max Weber, assegura tal autonomia lançando mão de sistema de justiça baseado em normas gerais, abstratas e previsíveis. Promovendo a estabilidade necessária ao capitalismo moderno, fundado na ideia do cálculo racional, em contraste com casuísmo próprio da política, moral e julgamentos conforme tradições7.

Contemporaneamente, o debate sobre instituições de mercado e direitos de propriedade evoluiu. Das variedades de “formas institucionais”, regras jurídicas e o Estado, tal qual mecanismos de coordenação determinantes da viabilidade da economia capitalista8; relação da emergência industrial e do mercado de capitais (especialização do comércio, finanças, serviços bancários e securitários) –  com crescente divisão, absorção e interdependência dos fatores – a exigirem instituições que efetivem direitos de propriedade no espaço e tempo9; segurança da lei, liberdade de contrato e sua higidez, enquanto elo da prosperidade das nações10. As teorias têm realçado a eficácia e imparcialidade da justiça, bem como de um regime de responsabilidade condizente com marcos do Estado democrático de Direito, questões afetas ao desenvolvimento.

A Decisão proferida pelo Min., Dias Toffoli na Rcl. 43.007/DF, no dia 6 de setembro, contra restrição do acesso integral ao conteúdo do Acordo de Leniência 5020175-34.2017.4.04.7000, da Companhia Odebrecht, pelo Juízo da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba/PR, no âmbito da AP 5063130-17.2016.4.04.7000, em descumprimento à Súmula Vinculante 14 e decisões na RCL 33.543/PR-AgR-AgR-ED-AgR, após diligências junto ao DRCI, demonstra que a referida Operação teria “passado ao largo dos canais formais”11, referente a acordos de cooperação internacional. A decisão gravita entorno destas questões de fundo.

O Ministro declarou “imprestabilidade dos referidos elementos de prova” produzidas no âmbito do acordo e na apuração das condutas dos agentes públicos envolvidos, por ação de “maneira coordenada” com finalidade política. Em “conluio a inviabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa”, portanto, do due process of law. Ressaltou “desvios de função”12, com danos graves “a pessoas naturais e jurídicas” que lesaram “tecnologias nacionais, empresas, empregos e patrimônios”. Intimando a Advocacia Geral da União a que os apurassem “para fins de responsabilização civil pelos danos causados pela União e por seus agentes em virtude da prática dos atos ilegais”13.

Um dos resultados da Lava Jato foi a desintegração do setor de construção pesada brasileiro, que à época representava 50% da formação bruta de capital fixo do país, segundo Pedro Leme, então Presidente do Goldman Sachs no Brasil. Entre 2014 e 2017, o país sofreu retração de 2,5% no PIB, equivalente a R$ 142,6 bilhões. R$ 47,4 bilhões em impostos, deixaram de ser recolhidos, com perda estimada em investimentos na ordem de em 3,6% do PIB, em razão da Operação. Houve queda de R$ 563 bilhões no faturamento das empresas implicadas15, e eliminação de 4,4 milhões de empregos – 1,1 milhão pertencentes ao setor da construção civil16.

A “Restrição a financiamentos, pelas empresas investigadas no Lava Jato, bem como de seus fornecedores”, foi registrada nos Relatórios de Estabilidade Financeira (REF) do Banco Central, entre 2015 e 2016, mormente àquelas mais alavancadas18 – grande parte via desembolsos do BNDES e BNDESPar; R$117 bilhões, apenas em 2014, ano em que se inicia a Operação19. Impactos denunciados no Congresso Nacional, em requerimentos à Comissão de Minas e Energia, durante o governo Dilma Rousseff, por parlamentares oposicionistas, com relação à indústria naval19 e fundos de pensão20.

Advieram os danos, em geral, de suspensões e cancelamentos de contratos e bloqueio de bens necessários à perseguição do objeto social das empresas, por decisões judiciais e administrativas envolvidas pela politização e punitivismo, que capturou órgãos de controle naquele contexto21. Acordos cujo algumas provas tornadas agora imprestáveis (multas referentes às leniências celebradas, junto às 7 maiores empreiteiras, totalizam R$8.632.946.053; todas estas, atualmente em recuperação judicial22).  Paralisando operações relevantes, interrompendo contraprestações do Poder Público, levando macroempresas a insolvência financeira e problemas de fluxo de caixa.

Em razão da inidoneidade a qual foram sancionadas, não puderam celebrar novos contratos, com crises de imagem e governança. Mesmo após acordos de leniência, sanções foram aplicadas com base em fatos nestes mencionados. Gerando incerteza e dificuldade em obtenção de financiamentos, garantias e contratação de seguros para os empreendimentos. A desconfiança afugentou credores, tornando rigorosas as análises de crédito e elevação dos prêmios, conforme relatório do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada23.

Internacionalmente, o combate à corrupção orientou-se pela prevenção de ilícitos e fomento à cultura de integridade. Sob influência austríaca e alemã, Diretivas da União Europeia privilegiam o compromisso com o self-cleaning, dando-lhes poderes de sustar proibições e exclusões de contratação com a administração. A Diretiva de 2014 da EU alude aos princípios da livre circulação de produtos e serviços, proibição de discriminação e proporcionalidade24. E foco na penalização das pessoas físicas25. Casos emblemáticos como os da Siemens, Volkswagen e Samsung, levaram a sanções que não comprometeram financeiramente ou desmobilizaram de trabalhadores, afastando tão somente, os executivos das companhias. Ao contrário, membros da EU foram processados, em razão da não aplicação de punições rigorosas às pessoas jurídicas, como Reino Unido e Luxemburgo26.

Especialistas têm descrito desproporcionalidade e irrazoabilidade nas punições às pessoas jurídicas durante a Lava Jato: disputa entre agências (MPF, CGU, TCU, AGU) na celebração de acordos de leniência obstando seus efeitos e mantendo gravosas sanções no tempo27, equivalentes a “pena de morte da empresa, ao proibi-las de contratar com o Estado” [28]; disparidade entre sanções penais, civis e administrativas, em relação a casos análogos de corrupção internacional28. Em sentido oposto a legislação e acordos aos quais Brasil é signatário.

A doutrina afirma princípios de “adequação, necessidade e proporcionalidade” na aplicação do poder de polícia29; da “mínima intervenção na propriedade” no exercício do Poder ordenador30. Evidenciando desrespeito ao “princípio da preservação da empresa”, positivado no Art. 47 da Lei 11.101/05, que aduz a “manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores”31. O decreto que ratifica convenção da OCDE de combate a corrupção de Funcionários Públicos e Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, orienta sanções penais e financeiras a pessoas jurídicas “proporcionais e dissuasivas” (Art. 3, II DE 3.678/00).

Introduzida por José Aguiar Dias, inspirada na Lex Aquilia – “a ninguém é facultado causar prejuízo a outrem – (de omni damnos cavetur) – a responsabilidade civil deriva de agressão a interesse jurídico em descumprimento à ordem normativa, obrigando restituição de situação anterior à sua ocorrência”. Seus pressupostos são a conduta ligada logicamente a um dano. Em relação às decisões judiciais é regida pelo Art. 5º, LXXV CF/88, cuja interpretação é restritiva, segundo Alvarez Vianna, “Não podendo ser aplicada de maneira genérica às decisões judiciais”32. Para Flávio Willeman, a inaplicação do Art. 37 §6º a atos jurisdicionais “constitui violação ao estado democrático de direito”, quando “exercício da atividade jurisdicional anormal, sujeite a dano excessivo, prive exercício direitos fundamentais, se inobservados o devido processo legal e respeito ao contraditório”33. 

Há responsabilidade para Santofimio Gamboa, da Universidad Externado de Colômbia, onde erro judicial produza “dano definitivo, determinado e anormal qual a vítima não está legalmente obrigada a suportar”34. Entendimento similar é encontrado na jurisprudência, sobre erro judicial35. Houve “falta do dever de cautela, de transparência, de imparcialidade e de prudência de magistrados que atuaram na operação lava-jato” segundo Relatório Parcial dos Trabalhos da Correição Extraordinária do CNJ. Tal qual proferido pelo Min. Dias Toffoli, estivemos, no curso da Operação, diante de série de erros judiciais a partir de condutas contra legem; com danos anormais que particulares não estavam obrigados legalmente a suportá-los, e adequado nexo causal entre eles. Deste modo, a responsabilidade civil do Estado, e consequente dever de indenizar, é cabível.

Ante a possibilidade de responsabilização civil objetiva do Estado por atos lesivos de autoridades investidas de poder jurisdicional, coloca-se questão de efetividade da reparação (Arts. 37, 5º, XXXV, LIV, LV e LXXVIII, da CF/88). Uma vez Reconhecido o dever de indenizar, com direito a regresso, na forma de título judicial, estes serão enfim convertidos em precatórios, nos termos do XXXXX. No mais das vezes, não executados por longíssima quantidade de tempo, em detrimento da vítima. 

Apurado individualmente o dano à particular in casu – não coletivos, dada função social da propriedade (Art. 170, III da CF/88), como na AP 1025482-78.2022.4.01.3400 – a seus direitos de propriedade (Art. 5º, XXII, da CF88), e excedido o valor R$ 500.000,00; por iniciativa do Advogado Geral da União, Ministro de Estado ou da Secretaria Geral da Presidência, poder-se-ão celebrar acordos ou transações em juízo, a fim de encerrar litígio envolvendo a União. Conforme lei 9.469/97 (Lei das Transações Público-Privadas), regulada pela Portaria da AGU .109/07, n. 990/09, n 2/14 e portarias PGF 915/09 e 603/1036. 

O acordo poderá prever disposição da indenização devida, com reestabelecimento da situação, onerando o menos possível o erário, sob contrapartidas mútuas. Com transação destes por títulos do tesouro de longo prazo, compensáveis em pagamento de bônus de outorga e ou demonstrativos de garantias de capacidade de capital, em editais de novas PPPs e para reequilíbrio econômico-financeiros em contratos já celebrados, embargados por ações lesivas – são termos possíveis, em vista da legislação e jurisprudência atuais. Para torná-lo viável, o Estado poderá requerer que benefícios sejam utilizados em favor apenas da empresa, incluindo até sua transformação societária, com abertura de capital – ainda que sem perda de controle – auxiliando a necessária recapitalização e incorporação de padrões de governança corporativa do Novo Mercado. Tema discutido com Maria Virginia Nabuco Amaral Mesquita Nasser.  É do interesse público que tais companhias sejam soerguidas. Há preocupação com a ausência de construtoras – que foram destruídas – nos Editais do novo Programa de Aceleração do Crescimento37.

A responsabilização possui viés reparatório – recuperando empresas nacionais de infraestrutura, dotadas de expertise acumulada ao longo de décadas e serviços prestados ao país38 – mas também disciplinante. Ao sancionar excessos e arbítrios estatais no exercício do poder de controle, lida-se com herança histórica de irresponsabilidade do Estado, incompatível com um regime de responsabilidade próprio do Estado democrático de Direito. Assim, levando a melhoria do ambiente de negócios, a previsibilidade e a estabilidade dos contratos, além da reparação a lesão de direitos.

Permitirá assim, maior cálculo dos atores econômicos para decisão de investimento. Reduzindo riscos da inversão àqueles propriamente da atividade de empresa39. Beneficia, portanto, toda sociedade. Para que àqueles jamais se repitam. Como preconizado pelo filósofo holandês do séc. XVII, Bernard de Mandeville, a destreza política consiste em tornar “vícios privados em benefícios públicos”40, diferentemente dos “inocentes do Leblon”, de Carlos Drummond de Andrade. Que “tudo ignoram”. Pois que há “um óleo suave que passam nas costas, e esquecem”. 

Publicado por Migalhas