Aplicação inconsistente de normas internacionais gera incerteza e insegurança jurídica no setor
O Brasil enfrenta um desafio persistente em honrar com seus compromissos ante aos tratados internacionais nos quais é signatário, um cenário que, lamentavelmente, foi confirmado recentemente.
Essa postura não apenas afeta a segurança jurídica e a diplomacia do país, mas também impacta diretamente um setor de alcance global: a aviação. As normas internacionais deste setor são pilares fundamentais para a segurança operacional, econômica e jurídica das operações aéreas, destacando a importância crítica de sua aplicação correta e consistente no cenário global.
Relembrar este tema é crucial diante das transformações recentes. O Brasil, como signatário da Convenção de Montreal, valida e concorda que as ações decorrentes de voos internacionais devem respeitar os termos da referida norma internacional, independente do dano que está sendo tutelado.
Antes do julgamento do Tema 210, embora já fossemos signatários da referida convenção, adotávamos o prazo prescricional de cinco anos, conforme estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, em contraposição ao prazo de dois anos preconizado pela Convenção de Montreal.
No entanto, em 2016, a Corte Suprema determinou o prazo de dois anos para o ajuizamento de ações envolvendo o transporte aéreo internacional, alinhando-se com a Convenção e sinalizando o compromisso em respeitar os termos do tratado, um passo respeitoso do Brasil no âmbito global. Contudo, a comemoração foi breve.
A estabilidade foi passageira, já que em meados de 2021, decisões da mesma Corte passaram a argumentar, de forma contraditória, no sentido de que o Tema 210 não englobava o dano extrapatrimonial.
Segundo essas decisões, o prazo prescricional de dois anos aplicava-se somente às hipóteses de danos materiais, enquanto o dano moral permaneceria sujeito ao prazo de cinco anos estabelecido na legislação consumerista.
Uma vez mais, a insegurança jurídica dominou o país. Tribunais divergiam, alguns mantendo o prazo de dois anos e outros aplicando o prazo de cinco anos. Os passageiros, que deveriam ser protegidos, ficavam à mercê do acaso. Alguns viram suas indenizações veementemente negadas com base na decisão do STF, enquanto outros se deparavam com essa nova interpretação jurídica.
Importante relembrar que, conforme o próprio Supremo ponderou no julgamento do Tema 210, o artigo 178 da Constituição Federal prevê que “a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”.
No referido julgamento, não havia qualquer distinção em relação à aplicação da norma. O que se considerou, na ocasião, foi o simples fato de o Brasil ter firmado o acordo internacional e, portanto, anuir com as normas ali dispostas. O dano tutelado, se material ou extrapatrimonial, não foi objeto de discussão, que girou em torno somente da aplicação da ordenação ao transporte internacional.
Logo, o que foi definido pela Corte no tocante ao transporte internacional, foi que a legislação deve obedecer aos acordos estabelecidos pela União, em consonância com o princípio da reciprocidade.
No ARE 766.618/SP, a Corte decidiu por aplicar o prazo específico estabelecido na Convenção de Montreal, ou seja, dois anos, em um caso que buscava apenas indenização por dano moral relacionada a problema em voo internacional.
Entretanto, de forma lastimável e retrato de um retrocesso, vemos um movimento de arrependimento, agora consolidado na Suprema Corte, que no final de novembro revisitou o Tema 210 e, em um movimento controverso e que alimenta a insegurança jurídica, para estabelecer uma atualização, afirmando agora explicitamente que o entendimento presente não se estende aos danos extrapatrimoniais.[1]
A atualização, que ganha contornos de uma nova tese jurídica, é surpreendente. Se o que está sujeito à prescrição é a busca por reparação, é no mínimo curioso como os ministros agora afirmam que somente a busca por reparação material está sujeita à prescrição com base nas regras da convenção.
Em mais uma oportunidade, o setor aéreo – que segue parâmetros econômicos e regulamentações internacionais distintas e peculiares – tratado dentro dos padrões ordinários adotados para relações de consumo de setores genéricos e não regulados.
Em meio a idas e vindas judiciais, a aplicação inconsistente das normas internacionais de aviação no Brasil gera incerteza e insegurança jurídica. As oscilações nas decisões judiciais, especialmente em relação aos prazos prescricionais para ações decorrentes de voos internacionais, não apenas afetam a confiança dos passageiros, mas também têm impactos significativos para o setor aéreo brasileiro e sua expansão.
É preciso urgência na garantia de uma aplicação coerente e estável das normas internacionais pelo Brasil, visando preservar a segurança jurídica. É fundamental um diálogo construtivo e uma revisão cuidadosa das interpretações divergentes, em busca da harmonização entre as leis nacionais e os tratados internacionais dos quais somos signatários.
Somente com essa abordagem alinhada e com um esforço conjunto será possível assegurar a proteção dos direitos dos passageiros, preservar a credibilidade do Brasil no contexto internacional e proporcionar um ambiente jurídico estável e previsível para a aviação brasileira que necessita de bases sólidas e alinhadas ao contexto mundial para um avanço exponencial.
Publicado por Jota