A decisão por um divórcio que já tende a ser bastante complicada, neste momento de pandemia, tem sido ainda mais difícil
Quando temos uma crise, um sem número de recursos e de profissionais têm que se dedicar a combater seus impactos mais imediatos. Mas, e aquelas consequências que, apesar de não estarem intimamente ligadas a esses efeitos mais óbvios, mudam nossas vidas em igual medida? Na pandemia da Covid-19, um sem número dessas consequências são randômicas e imprevisíveis. E se abateram fortemente sobre os ordenamentos e aparatos de saúde e Justiça estatais, e de forma muito específica, sobre as famílias e sobre o Direito de Família em especial. E que efeitos tem se destacado nesse cenário no Brasil para o advogado que lida com os conflitos familiares em seu dia a dia? Já podemos observar, discutir e traçar cenários?
Ainda está cedo para dizer se no Brasil acontecerá o mesmo que se observou na China. Enquanto os países ocidentais começavam a se preparar para viver o confinamento e o isolamento sociais demandados pela pandemia, os cartórios chineses estavam lotados com casais cujos casamentos não sobreviveram ao vírus. Xi’am, de 12 milhões de habitantes, capital da província de Shaanxi, região central da China, registrou um recorde no número de pedidos de divórcios. Em alguns distritos, todos os horários disponíveis para tratar do tema nos escritórios locais do governo ficaram tomados por semanas. Houve registros de procura acima da média em cartórios de municípios de outras províncias, como a de Sichuan, por formulários de divórcio.
No Brasil, literalmente, da noite para o dia, as famílias tiveram que se readaptar e reorganizar seus modos de vida. A ausência de escolas, ou outras formas de apoio como a ajuda de babás e de pessoas da família; a dificuldade de se adequar às novas formas de estudar; dificuldade de limitar horários de trabalho (já que muitos passaram a desempenhar suas atividades de casa); a proibição de convivência mesmo em áreas comuns de edifícios; ausência de atividades de lazer são algumas das situações enfrentadas. Muitas famílias estão sobrecarregadas, algumas endividadas e doentes, e diversas delas estressadas com uma convivência forçada 24/7. E, em casos mais extremos, há aqueles que enfrentam situações onde o conflito se desdobra em situações de violência e abuso, ou no qual a conciliação não é mais possível.
Certo é que a decisão por um divórcio que já tende a ser bastante complicada, neste momento de pandemia, tem sido ainda mais difícil. Muitos casais vêm sendo obrigados a seguir convivendo na mesma casa. A situação é complexa para os operadores do Direito que, também, da noite pro dia, se veem forçados a enfrentar questões que não estão previstas no ordenamento jurídico, tais como a separação de corpos nos casos de pandemia. Por um lado, o Estado é o maior interessado em que o vírus não se propague. Por outro, tem que ponderar interesses. Deve agir de forma não só a evitar como reprimir abusos e casos de violência contra a mulher (que, na maioria das vezes, estão em situação de vulnerabilidade).
Além disso, apesar dos Tribunais estarem funcionando apenas em regime de plantão, já se pode observar um grande número de pedidos suspendendo ou alterando a convivência dos filhos de pais divorciados. Decisões judiciais têm favorecido à suspensão da visitação, uma vez que geralmente é melhor para a criança/adolescente permanecer em seu lar de fixação, do que ser exposto ao risco de contágio. Juízes têm preferido conceder a medida de suspensão da convivência até o fim do isolamento social, por cautela, do que negar e depois haver uma confirmação de contaminação da criança e serem responsabilizados posteriormente por uma decisão não concedida. Em contrapartida tem sido frisada a necessidade de facilitação de acesso dos filhos com o outro genitor por meio digital.
O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estendeu a todos os presos por dívidas alimentícias no país os efeitos da liminar que garantiu prisão domiciliar aos presos nessa mesma condição no estado do Ceará, em razão da pandemia de Covid-19; também sendo aplicada aos novos casos, neste período de surto do coronavírus. A medida, apesar de acertada e louvável, pode em alguns casos encorajar os devedores a manter suas dívidas, pois a pena de restrição de liberdade era justamente o que os fazia pagar. Novamente, inadimplências e revisões no caso de pensões alimentícias podem acabar se convertendo em mais uma consequência grave especialmente para mulheres, que sofrem de maneira ainda mais intensa como toda a sobrecarga na questão do trabalho e da diminuição e precarização de sua renda.
Durante a quarentena, o problema da violência doméstica se agravou devido à convivência intensa e a apreensão devido à incerteza gerada pela doença. China, França, Espanha, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e Argentina registraram crescimento nos números de denúncias ou ocorrências de violência contra mulheres e meninas. No Brasil, não foi diferente: em São Paulo, o número de mulheres assassinadas dentro de casa quase dobrou durante os dias desta quarentena, em comparação ao mesmo período do ano passado.
Por todos esses motivos, urge falar-se da necessidade de se estabelecer condições seguras para ambas as partes de futuras separações. Considerando que a pandemia não tem data para terminar, não há como forçar um casal em conflito a permanecer sob o mesmo o teto até uma data que não tem dia nem hora para acontecer. Sob a alegação de preservação da saúde do agressor, não se pode colocar a mulher vítima de violência (seja ela física ou psicológica) em mais uma situação de vulnerabilidade.
Tatiana Moreira Naumann é advogada, especialista em Direito de Família, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atende principalmente mulheres.
Originalmente publicado por O Globo