Regulamentação envolvendo transporte aéreo de carga é tema corriqueiro nos Tribunais de Justiça brasileiros
Para aqueles que acompanham as notícias do setor aéreo e, ainda, para os que são impactados diretamente com decisões judiciais conflitantes, que acabam por gerar insegurança jurídica no meio, destaca-se recente e importante decisão do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à regulamentação do transporte aéreo internacional de cargas.
A questão da regulamentação envolvendo transporte aéreo de carga, assim como de bagagem e de passageiro, é tema corriqueiro nos Tribunais de Justiça brasileiros. O cerne da discussão, e que de fato é a causa para decisões contraditórias, gira em torno da aplicação correta da legislação.
Isso porque, apesar do Brasil ser signatário da Convenção de Montreal desde 2006, por meio da promulgação do Decreto 5.910/2006 e, portanto, como membro seguidor ter o compromisso internacional e soberano de se submeter às suas regras, o Judiciário brasileiro muitas vezes vai de encontro a este pacto, sobrepondo a legislação interna sob a legislação internacional firmada entre os países que escolheram a ela se submeter.
Inobstante o artigo 178 da Constituição Federal brasileira garantir, no que diz respeito ao transporte aéreo internacional, que deverão se observar os acordos firmados pela União, nota-se, na prática, uma clara resistência do Judiciário brasileiro na sua aplicação, em afronta, portanto, ao Princípio da Reciprocidade.
Pode não parecer, mas os impactos causados por essas decisões vão muito além da insegurança jurídica para o setor, o que por si só já traz significativos prejuízos, principalmente no que diz respeito a investimentos estrangeiros e fomento da concorrência para a atividade aérea brasileira. No final das contas, tal prática acaba por se refletir no valor das passagens aéreas e no alcance/disponibilidade desse tipo de transporte para a nossa população.
Estamos falando de transporte internacional e, portanto, de uma atividade que atravessa fronteiras. Por isso, a importância de se ter regras comuns de aplicação internacional, a fim de regulamentar uma atividade mundial, que conecta países e pessoas de diferentes nacionalidades.
Em razão dessas decisões judiciais contraditórias, o tema já foi parar, em mais de uma oportunidade, na Suprema Corte brasileira e, no que se esperava que seria o fim das discussões, em 2017, no julgamento do tema 210, o STF sacramentou o seu entendimento, no sentido de que “as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.
Em que pese, naquela oportunidade, tratar-se de transporte aéreo internacional envolvendo passageiro (especificamente no caso de extravio de bagagem), não houve no julgamento qualquer ponderação quanto ao alcance da decisão, já que o que se discutia era a aplicação da lei interna (CDC) ou da lei internacional (Convenção de Montreal) às questões envolvendo transporte aéreo internacional.
Inobstante a discussão ter parecido encerrada com aquele julgamento, novamente a corte foi provocada a se posicionar, agora em processo judicial envolvendo especificamente transporte aéreo internacional de carga, e importantes considerações foram tecidas pelo ministro Gilmar Mendes, relator do processo.
Além de reforçar que o que se discutia neste caso era novamente aquela questão suscitada quando do julgamento do tema 210, já que o ponto crucial continuou sendo o alcance do artigo 178 da Constituição, o ministro ponderou, de forma brilhante e coerente, que “(…) a tese fixada no tema 210 aplica-se a todo o tipo de conflito envolvendo transporte internacional, cujas normas tenham sido objeto de tratados internacionais firmados pelo Brasil”.
Ou seja, mais uma vez, com esta importante decisão para o setor aéreo brasileiro, com impactos também internacionais, se consolidou o entendimento de que os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário têm prevalência sobre as leis internas. As Convenções de Varsóvia e Montreal englobam regras para transporte aéreo internacional não só de pessoas e de bagagem, mas também de carga, e, portanto, deverão ser observadas e aplicadas sempre que houver conflito envolvendo tais matérias.
Vale dizer que a Convenção de Montreal limita o valor da indenização em caso de destruição, perda, avaria ou atraso da carga, em 17 direitos especiais de saque por quilograma, salvo se o expedidor fizer uma declaração especial de valor. Isso obviamente tem uma razão de ser, dentre elas, o complexo sistema de transporte em si, que além de envolver companhias aéreas, envolve o setor aeroportuário, alfandegário, questões securitárias e até tributárias.
Agora nos resta aguardar e observar de que forma o Judiciário brasileiro infraconstitucional irá se comportar quando instado a se manifestar em casos semelhantes.
Permanecer de olhos fechados para as convenções internacionais firmadas pela União e desrespeitando a decisão da própria Suprema Corte – que já consolidou seu entendimento no sentido de que há hierarquia específica dos tratados internacionais –, além de sobrecarregar o STF, que acaba sendo constantemente compelido a reafirmar seu posicionamento e fazer valer a sua decisão, também demonstra desrespeito aos demais signatários desses acordos e fragilidade da soberania do país ante à comunidade internacional. Isso sem falar em todos os impactos e consequências negativas para o setor aéreo brasileiro.
Publicado por JOTA