O confinamento imposto pela Covid-19 deixou muitas mulheres mais vulneráveis à violência doméstica ao obrigá-las a conviver 24 horas por dia com seus agressores e ao dificultar o acesso aos órgãos de denúncia e acolhimento. Esse impacto da pandemia pode ser dimensionado pelo número de medidas protetivas de urgência concedidas durante e depois período de maior isolamento social no país.
Um levantamento feito pela plataforma EVA, do Instituto Igarapé, mostrou que, em três dos quatro estados que disponibilizaram dados, a concessão de medidas protetivas recuou até 84% no período de maior distanciamento (entre março e maio), na comparação com os meses de janeiro e fevereiro, mas voltou a subir no período em que se iniciou a flexibilização das restrições de circulação, a partir de junho. Só no Rio de Janeiro, a média de medidas concedidas caiu 39%, para depois subir 229%, nesta comparação.
“Essa análise pode indicar que dada a dificuldade em realizar as denúncias às polícias, o deferimento de medidas protetivas também foi dificultado. Assim como o registro aumentou ou teve queda no ritmo de redução no período seguinte [após o isolamento], também aumentaram as medidas concedidas”, diz o estudo do Igarapé.
O aumento de medidas deferidas após o início da flexibilização no estado pode indicar que havia uma demanda que ficou represada durante o período de maior isolamento, avalia a defensora Flávia Barbosa Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Ela pondera, no entanto, que desde que a defensoria passou a oferecer o atendimento remoto às vítimas de violência doméstica em função da Covid-19, a procura por ajuda e por medidas protetivas aumentou a ponto de o órgão estar estudando não encerrar esse canal de prestação de serviços após o fim da pandemia.
— Muitas mulheres que sofrem violência têm dificuldade de se deslocar, às vezes até de sair de dentro de casa, ainda mais nesse período. Muitas ainda têm vergonha da violência que sofrem. Por esse canal de remoto, percebemos que elas tem mais coragem para falar sobre a situação que vivenciam — afirma a defensora.
Falta de informação
A advogada Tatiana Naumann, especializada em Direito da Família, avalia que muitas mulheres ainda têm dificuldades em obter medidas protetivas porque sequer são informadas dessa possibilidade, prevista na Lei Maria da Penha, quando denunciam seus agressores na delegacia.
— Se a mulher não estiver bem orientada nesse sentido, não é algo que vai acontecer naturalmente, embora seja a obrigação do policial informar que ela tem esse direito. Quando a pessoa vai com advogado prestar queixa, é uma coisa. Quando vai sozinha, é outra — diz.
Ela lembra que as medidas protetivas podem ser concedidas não só em casos de agressões físicas, mas se aplicam também para proteger as vítimas de violência psicológica e moral.
Mariana (nome fictício), de 37 anos, conseguiu em agosto uma medida protetiva contra o ex-marido, em função das constantes e repetidas agressões verbais e humilhações que ele lhe dirigia, pessoalmente e por mensagens pelo celular.
— Não fazia ideia de que isso que ele fazia era crime. Com orientação da minha advogada, fui até uma Delegacia da Mulher fazer a denúncia e em 48 horas consegui a medida protetiva de proibição de contato. Minha vida mudou desde então, não sinto mais o pânico que sentia quando ouvia o barulho da notificação no celular — contou.
A defensora Flávia Nascimento explica que a medida protetiva pode ser solicitada e concedida sem a necessidade do registro da queixa policial. O pedido pode ser feito diretamente pela mulher à Justiça, seja sozinha, ou com auxílio de um advogado particular, ou de um defensor público.
— Ainda há juízes que não atuam nas varas especializadas que acabam exigindo o registro do boletim de ocorrência, mas não há nada na Lei Maria da Penha que determine que o BO é obrigatório para a concessão da medida — afirma Nascimento.
Ela explica ainda que, para que a medida seja deferida — o prazo para análise na Justiça é de 48 horas — é preciso que se demonstre que a mulher “está na iminência de sofrer uma violência ou violação” e quais são as possíveis consequências caso a medida não seja autorizada.
— Porém esse pedido muitas vezes é feito com poucas provas, pela peculiaridade da forma da violência, que é praticada em quatro paredes. O que fundamenta esse pedido é a palavra da vítima e o juiz deve analisá-lo levando isso em conta — ressalta a defensora, afirmando que, por isso, muitas medidas que não são analisadas por juízes das varas especializadas em violência doméstica acabam sendo indeferidas.
Patrulha Maria da Penha
Uma vez deferida, o cumprimento da medida é acompanhado no estado pela Patrulha Maria da Penha, da Polícia Militar do Rio. Com a pandemia, os contatos de monitoramento diário têm sido feitos via telefonemas, Whatsapp e chamadas de vídeo, além do patrulhamento nas proximidades das residências das assistidas.
— Com frequência entram em contato comigo para saber como eu estou. Me sinto mais protegida e não preciso mais ouvir a voz dele [do ex-marido]. O sentimento é de alívio — diz Mariana, sobre o atendimento da Patrulha Maria da Penha.
O Instituto Igarapé também analisou o descumprimento das medidas protetivas de urgência e pode concluir que as ordens judiciais de afastamento e proibição de contato foram mais cumpridas durante os meses de isolamento social e passaram a ser desrespeitadas quando as regras de distanciamento foram flexibilizadas nos estados, inclusive no Rio de Janeiro.
O descumprimento de medida protetiva configura crime e pode gerar prisão preventiva, conforme determina a Lei Maria da Penha, alertam Flávia Nascimento e Tatiana Naumann. No Rio de Janeiro, as denúncias de descumprimento podem ser feitas à própria Defensoria Pública, ao 190 da Polícia Militar ou diretamente à Patrulha Maria da Penha.
Até outubro deste, a Justiça do Rio havia concedido 23.218 medidas protetivas de urgência. Desde o fim de novembro, as mulheres que moram na capital também podem solicitar uma medida protetiva pelo aplicativo “Maria da Penha”, criado pelo Tribunal de Justiça do estado em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao acessar o link, a vítima preenche um formulário com seus dados e relata a agressão ou ameaça sofrida, podendo anexar fotos e áudios. Ao final, é gerado um pedido que será encaminhado a um dos juizados especializados em violência doméstica da capital. O aplicativo está disponível no site maria-penha-virtual.tjrj.jus.br
Publicado por Yahoo