Direito aeronáutico: arrependimento implícito do STF e abrangência do Tema 210

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Direito aeronáutico: arrependimento implícito do STF e abrangência do Tema 210

Um tema que tem gerado grande debate jurídico e decisões controvertidas pelos tribunais brasileiros é em relação ao prazo prescricional para ajuizamento de ação indenizatória, decorrente de um incidente ocorrido em voo internacional.

Isso porque, segundo as normas do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o prazo para um consumidor ajuizar uma ação em face de um fornecedor é de cinco anos contados a partir do conhecimento do dano, ao passo que a Convenção de Montreal prevê o prazo de dois anos contados da data de chegada do passageiro ao destino, ou, do dia da interrupção do transporte.

O Brasil, infelizmente, é conhecido internacionalmente por descumprir diversos tratados internacionais, ainda que sejamos signatários e o tenhamos internalizado sem ressalvas. Para além do impacto na segurança jurídica e na relação diplomática do Brasil com as demais nações, tal fato atinge diretamente o setor aéreo, serviço de alcance global, cujas normas internacionais são essenciais para segurança operacional, econômica e jurídica da operação.

A Convenção de Montreal, norma internacional e específica, prevê que “o direito à indenização se extinguirá se a ação não for iniciada dentro do prazo de dois anos, contados a partir da data de chegada ao destino, ou do dia em que a aeronave deveria haver chegado, ou da interrupção do transporte” .

Portanto, é correto afirmar que o prazo para ajuizamento de ações indenizatórias, decorrentes de problemas ocorridos em voos internacionais, é de cinco anos, como prevê o CDC? Essa resposta, certamente, é não. E esse embate de normas já havia, em tese, sido superado com o julgamento do Tema 210 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando se consolidou o entendimento no sentido de que as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas internacionais têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.

Entretanto, em uma retomada recente da discussão, voltamos a ter divergências sobre o assunto, que havia sido referendado pelo alcance da repercussão geral.

Vale lembrar que, conforme o próprio Supremo ponderou no julgamento do tema 210, o artigo 178 da Constituição Federal prevê que “a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade” .

Veja, ainda, que o artigo 5º, da Carta Magna, em seu parágrafo segundo, menciona que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Entretanto, apesar da previsão do prazo prescricional disposto na Convenção de Montreal da qual o Brasil é signatário, é importante destacar que, até 2016, os Tribunais brasileiros e o próprio Supremo Tribunal Federal, de forma equivocada, já que o Brasil é signatário da Convenção de Montreal desde 2006, consideravam as regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, que, diga-se de passagem, além de ser anterior à Convenção de Montreal, não é específica ao transporte internacional de passageiros.

Após algumas tentativas, o tema chegou às portas do Superior Tribunal Federal que, em dezembro de 2016, ao enfrentar o Tema 210, decidiu pela aplicação da Convenção de Montreal, tanto na limitação da indenização por dano material em caso de extravio de bagagem, ao julgar o RE 636.331/RJ, quanto no que tange ao prazo prescricional, ao julgar conjuntamente o ARE 766.618/SP.

No ARE 766.618/SP, a parte buscava indenização por dano moral em razão de problemas enfrentados em voo internacional. Destaca-se, pois de suma relevância, que a parte pleiteava, apenas, ressarcimento moral, e não material.

Ao apreciar a matéria, o relator ministro Roberto Barroso ponderou, de forma brilhante, que a convenção veio a unificar as normas do transporte internacional, visando fomentar e viabilizar o setor. Ainda, de forma implacável, ponderou que “sem a uniformização das normas aplicáveis, a insegurança jurídica seria enorme — inclusive para os passageiros, que só poderiam saber os seus direitos recorrendo a complexas regras de conexão e estudando a legislação estrangeira aplicável” [3].

Entretanto, de forma lastimável, vemos um movimento de “arrependimento” implícito na Suprema Corte, um verdadeiro retrocesso. Isso porque, de uns tempos para cá, mais precisamente em meados de 2021, o Supremo voltou a se posicionar sobre o tema, entretanto, para espanto de todos, contradizendo sua tese geral — firmada propositalmente de modo sucinto, conforme tradição da corte — e desprezando todo o julgamento que deu base à tese e de onde se extrai a essência do Tema 210.

Agora, na voz da Corte Suprema, uma vez que a Convenção de Montreal não aborda danos extrapatrimoniais, o prazo prescricional para ajuizamento de ações que visem indenização moral seguiria as normas do CDC. Veja que o problema aqui vai muito além da insegurança jurídica.

Como já mencionado, o acórdão paradigma atacado pelo ARE 766.618/SP versava, exclusivamente, sobre pleito moral, e esta mesma corte entendeu, corretamente, à época, pela aplicação da Convenção de Montreal, limitando o prazo para ajuizamento de ações em dois anos.

Sem responder quais fatos levaram os julgadores a mudarem seu posicionamento, afinal, este é velado, as ações que agora batem às portas da Corte são contempladas com entendimento diverso: cinco anos para ajuizamento de ações que perseguem indenização moral.

Causa espanto a nova tese jurídica firmada pela corte. Vejamos que o instituto da prescrição é a perda da pretensão da reparação. O que prescreve é a pretensão da reparação. Logo, como podem, agora, os ministros afirmarem que apenas a pretensão material está prescrita com base nas regras da Convenção?

Ora, a assertiva atual da corte aumenta a insegurança jurídica e causa um retrocesso no ecossistema das companhias aéreas internacionais que operam no Brasil. Se o fato foi abarcado pela prescrição, ele não poderá ser perseguido em juízo, seja por pretensão da parte moral ou material.

O novo posicionamento, além de ir de encontro ao minucioso julgamento que culminou com o Tema 210, ignora que não se lida com consumidores ordinários e hipossuficientes no transporte internacional de passageiros, e que não existe esvaziamento das proteções mínimas concedidas ao consumidor na contagem do prazo prescricional de dois anos previsto na norma internacional específica e especializada.

É preciso que o Supremo reflita e se manifeste, a fim de frear o caos jurídico que se formou em torno do tema, em respeito ao setor que já vem tão afetado pelos efeitos colaterais da pandemia.

 

Publicado por Conjur