Opinião por Rafael Verdant
Desde a apresentação do Projeto de Lei n.º 4/2025, que trata da reforma do Código Civil brasileiro, um dos pontos que mais tem gerado debate, fora das manchetes, é o avanço da obrigatoriedade de escritura pública em detrimento do instrumento particular, mesmo em negócios que historicamente se desenvolviam com autonomia privada e menor intervenção notarial, como é o caso de compra e venda de imóveis até determinado valor, emancipações, promessas de compra e venda, cessões de direitos, entre outros.
A proposta parece caminhar no sentido de consolidar um modelo mais formalista e menos flexível, em nome da segurança jurídica. Diversos atos que hoje podem ser realizados por instrumento particular, com base em leis especiais ou em usos consolidados, passam a exigir escritura pública obrigatória.
A lógica, segundo a comissão de juristas que elaborou o anteprojeto, é combater a informalidade e prevenir litígios. Mas, ao fazê-lo, impõe um custo, não só financeiro, mas também de acessibilidade que será sentido principalmente nas camadas mais vulneráveis da população.
Não se trata de questionar a relevância dos cartórios. O serviço notarial cumpre papel fundamental na autenticidade, publicidade e fé pública dos atos civis. Embora exista uma percepção geral da população de que os cartórios custam caro, há que se trazer para a realidade a contrapartida dos serviços prestados. A título de comparação, o 11.º Cartório Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, um dos campeões de arrecadação da União, prestou, no segundo semestre de 2021, 152 mil serviços, com arrecadação de R$ 66 milhões. No segundo semestre de 2024, o número de serviços duplicou (230 mil), mas o faturamento não aumentou na mesma proporção (foi de R$ 91 milhões).
Há de se levar em conta, também, que arrecadação é a receita bruta do período, ou seja, produto da quantidade de atos praticados e o valor de cada ato. Parte dessa receita é repassada a entidades ou órgãos, na forma da legislação estadual específica. Além disso, boa parte deste montante vai para pagamento de salários: o 11.º Cartório de Imóveis de SP, por exemplo, emprega 157 pessoas em regime CLT.
No entanto, ao tornar obrigatória a presença de um tabelião em situações em que as partes poderiam atuar com autonomia, o novo Código Civil corre o risco de onerar o cidadão sem proporcional ganho de efetividade.
O desafio claro é garantir segurança sem sufocar a autonomia. Um Código Civil moderno precisa reconhecer que a proteção jurídica está na clareza dos atos, na liberdade das partes e no acesso efetivo à justiça. A obrigatoriedade da escritura pública, se não for acompanhada de mecanismos de facilitação, gratuidades e simplificação procedimental, pode transformar o cartório de um espaço de cidadania para um obstáculo à formalização da própria vida civil, o que transbordará, certamente, em ineficiência programada e uma série de transmissões possessórias sem o devido registro.
A pesquisa Raio-X dos Cartórios, realizada pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR), de 2024, revelou que 57,14% das serventias pesquisadas realizam iniciativas sociais diversas, como balcões de cidadania com emissão gratuita de documentos, casamentos comunitários, regularização fundiária e assistência técnico-jurídica. Tais ações, que certamente levam cidadania às populações mais vulneráveis, não podem ser mera liberalidade, mas devem fazer parte da construção de caminhos alternativos para programas efetivos de gratuidade.
A modernização do Código Civil pode ser bem-vinda, mas a busca por segurança jurídica não pode ser confundida com um retrocesso à formalidade excessiva. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre e ciência, custo e confiança, notadamente, porque o direito deve servir ao cidadão.
Rafael Verdant
advogado, especialista em Processo Civil e Gestão Jurídica pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC), é membro correspondente da Comissão Especial de Direito Aeronáutico da OAB/SP
Fonte: Estadão